A solidão em que a alma está só por só com Jesus
Chegado Cristo à fonte de Sicar, mandou todos os apóstolos que fossem à cidade buscar de comer, porque era, diz o evangelista, a hora do meio-dia (Jo. 4, 7). Veio neste tempo a samaritana, converteu-a o Senhor, e tornando os apóstolos, pondo-lhe diante o que traziam, não quis comer. Duas grandes dúvidas tem este lugar. Primeira, por que mandou Cristo à cidade os apóstolos todos, sendo que para trazer de comer, bastava um ou dois? Segunda: se os mandou buscar de comer, e traziam, e lho ofereceram, e era meio-dia, por que não comeu? Primeiramente não comeu, porque já tinha comido. Assim o suspeitaram os discípulos, dizendo entre si: Nunquid ali quis attulit ei manducare?[40] Mas não entenderam que quem tinha trazido de comer, era a mesma samaritana. Aquela alma convertida foi para Cristo não só a mais regalada iguaria, mas o melhor e o mais esplêndido banquete que lhe podia dar o céu, quanto mais a terra. Tal foi o que também hoje lhe deu, na conversão desta pecadora. Notai. Quando Cristo venceu no deserto as tentações do demônio, banqueteou o céu a Cristo vencedor com iguarias da terra; porém hoje, como tentações foram maiores, e maiores os tentadores, e a vitória maior, foi também maior e melhor o banquete. Lá, a Cristo vencedor das tentações do demônio, serviram-no os anjos com manjares do corpo: Et ecce angeli ministrabant ei;[41] e a Cristo vencedor das tentações dos homens, banqueteou a convertida com a sua alma, que para Cristo o prato mais regalado, e aquele que só lhe podem dar os homens, e não os anjos. Esta foi a razão por que o Senhor disse que tinha comido.
E a razão por que mandou à cidade, não parte dos apóstolos, senão todos, foi porque havia de converter ali a samaritana, e para uma alma se converter verdadeiramente a Cristo, é necessário que estejam muito a solas: Cristo só por só com alma, a alma só por só com Cristo. Remansit Jesus solus, et mulier in medio stans[42].( Jesus e a alma sós. Esta é a solidão que Deus quer para falar às almas e ao coração Ducam eam in solitudinem, et loquar ad cor ejus.[43] Não é a solidão dos ermos e di desertos: é a solidão em que a alma está só por só com Jesus. Nesta solidão, só por só lhe fala; nesta solidão, só por só ouve; nesta solidão, só por só lhe representa suas misérias, e lhe pede, e alcança o remédio delas e ainda sem o pedir, o alcança. com o silêncio e conhecimento humilde de suas culpas, como aconteceu a esta solitária pecadora. Façamo-lo assim, cristão, por amor de Cristo, que tanto o deseja, por amor de nossas almas, que tanto arriscadas andam, e tão esquecidas de si. Não digo que deixeis o mundo, e que vos vades meter em um deserto; só digo que façais o deserto dentro no mesmo mundo, e dentro de vós mesmos, tomando cada dia um espaço de solidão só por só com Cristo, e vereis quanto vos aproveita. Ali se lembra um homem de Deus e de si; ali se faz resenha dos pecados e da vida passada; ali se libera e compõe a futura; ali se contam os anos, que não hão de tornar; ali se mede a eternidade, que há de durar para sempre; ali diz Cristo à alma eficazmente, e a alma a si mesma um nunca mais muito firme e muito resoluto: Noli amplius peccare; ali enfim se segura aquela tão duvidosa sentença do último juiz: Neque ego te condemnabo: Nem eu te condenarei. – Esta é a absolução das absoluções, esta é a indulgência das indulgências, e esta a graça das graças, sem a qual é infalível o inferno, e com a qual é certa a glória.
Notas:
[40] Será acaso que alguém lhe trouxesse de comer? (Jo. 4, 33).
[41] E eis que chegaram os anjos e o serviram (Mt. 4, 11).
[42] E ficou só Jesus, e a mulher, que estava em pé (Jo. 8, 9).
[43] E a levarei à soledade, e lhe falarei ao coração (Os. 2, 14).
Referência: Vieira, Antônio. S. J., 1608-1697. Sermão no Sábado Quarto da Quaresma. Em Lisboa. 1652. Trecho final.
Podcast e resumo desse Sermão no link: Sermão no sábado quarto da Quaresma.
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