A liberdade dos que morrem antes de morrer.

                                           
Inter mortuos liber (Sl. 87,6):

 

          Entre os mortos livre. Livre dos cuidados do mundo, porque já está fora do mundo. Livre de emulações e invejas, porque a ninguém faz oposição. Livre de esperanças e temores, porque nenhuma coisa deseja. Livre de contingências e mudanças, porque se isentou da jurisdição da fortuna. Livre dos homens, que é a mais dificultosa liberdade, porque se descativou de si mesmo. Livre finalmente de todos os pesares e moléstias e inquietações da vida, porque já é morto. 
           A todos os mortos se canta piamente por costume: Requiescant in pace. Mas esta paz e este descanso, só o logram seguramente os que morreram antes de morrer. Vede-o no mesmo texto de Davi, donde a Igreja tomou aquelas palavras: In pace in idipsum, dormiam et requiescam: (29) Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo: In idipsum. Nesta cláusula in idipsum está o mistério, que sendo a sentença tão clara, a faz dificultosa, mas admirável. Que quer dizer: Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo? Se dissera: Morrerei para descansar em paz, bem se entendia; mas Morrerei e descansarei em paz para isso mesmo? Se há de morrer e descansar em paz para isso mesmo, há de morrer e descansar em paz, para morrer e descansar em paz? Assim é, e esse foi o profundo pensamento de Davi. Como se dissera: Eu quero morrer e descansar em paz na vida. E por que, ou para quê? Para isso mesmo; para morrer e descansar em paz na morte: In pace in idipsum, dormiam et requiescam. Por isso, com grande propriedade, significou o morrer pela frase de dormir: dormiam, porque o sono é morte em vida. Daqui se seguem duas conseqüências últimas, ambas notáveis e de grande consolação para os que morrem antes de morrer. A primeira, que só eles, como há pouco dissemos, gozam seguramente de paz e descanso. A segunda, que da paz e descanso desta morte, se segue também seguramente a paz e descanso da outra, que é o argumento de todo o nosso discurso. Os que morrem quando morrem, perdem o descanso da vida, e não conseguem ordinariamente o da eternidade, porque passam de uns trabalhos a outros maiores. Assim diziam no inferno aqueles miseráveis, que já tinham sido felizes: Lassati sumus in via iniquitatis:(27)Chegamos cansados ao inferno. - Ao inferno, e cansados, porque lá não tivemos descanso, e cá teremos tormentos eternos. Pelo contrário os que morrem antes de morrer, morrem descansados, e morrem para descansar: In pace in idipsum, dormiam et requiescam. Oh! que paz, oh! que descanso para a vida e para a morte! Creio que ninguém haverá, se tem juízo, que se não resolva desde logo a viver e morrer assim, ou a morrer assim para morrer assim. Acabando desta maneira a vida, esperaremos confiadamente a morte, e por benefício do pó que somos: Pulvis es, não temeremos o pó que havemos de ser: In pulverem reverteris.
(26) Em paz dormirei nele mesmo, e repousarei (Sl. 4,9).
(27) Cansamo-nos no caminho da iniqüidade (Sab. 5, 7).
                                                                                                                       LAUS DEO

 

Vieira, Padre Antônio. Trecho retirado da parte final do "Sermão de Quarta-feira de Cinza" pregado em Roma, na igreja de Santo Antõnio dos portugueses. Ano de 1673, aos 15 de fevereiro, dia da trasladação do mesmo santo.

Conheça também: Sermão de Quarta-feira de Cinzas do ano de 1672. Leitura feita por Thaís Travassos. 

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